sábado, 28 de novembro de 2009

Tecnologia e controle social: Cartão SUS




Lembro de meu pai contando, nas noites de chuva em que os raios impediam que se ligasse a TV, recém comprada, de como era a vida quando ele era criança. Minha imaginação ficava povoada de imagens de noites escuras, céus estrelados e histórias de lobisomens, boi tatá e mulas sem cabeça. Havia no ar um sentimento de comunhão entre meu modo de vida, a reverência que sentia pelos mundos que me chegavam pela tela da TV e a minha origem paterna. Com a fala grossa e pausada de meu pai eu encontrava um lugar no mundo e na linha do tempo. Um lugar para vir a ser.
Em outros dias, depois da sessão das duas, hoje sessão da tarde na Globo, olhava meu rosto no espelho e não me conformava. Não havia ninguém como eu no papel de herói, nenhum personagem principal, nada de meus traços mestiços no lado do bem. No eurocentrismo triunfalista da Rede Globo e do regime militar em 1976, os maiores heróis mestiços eram "Os trapalhões". Nada muito estimulante em termos do que vir a ser no futuro. Pensava em mim mesmo como um europeu, ou norte-americano, loiro e de olhos azuis, preso em um corpo de bugre, mistura de negro e índio. Na verdade era com um xirú, possuído pelo espírito de Peter Parker ou de Clark Kent.
A forte impressão causada pela mudança de mundo experimentada por meu pai, desde sua infância na lavoura de subsistência até sua condição de chefe de família, empregado em uma importante estatal e morador de uma casa com água encanada, luz elétrica e uma, vejam só, TV preto e branco de 29 polegadas, me ajudavam a crer que eu me transformaria ao longo da vida em um protagonista de seriado americano.

A violenta transformação de vida, relacionada ao avanço tecnológico, provia, ela mesma, a adaptação e o condicionamento, a expectativa principalmente, de que tudo seguiria mudando e revolucionando nossa forma de viver. Fui educado para aprender mais do que meu pai sabia e para viver melhor do que ele vivia.
Como conta meu compadre sobre um grupo que se maravilhava diante do primeiro rádio de pilha da cidade de Cruz Alta: Lá de um canto da roda de conversa, o mais velho de todos murmura, “Depois que inventaram a máquina de debulhar milho, não duvido de mais nada”. Parece que algo capaz de separar, de um lado sabugo e de outro grãos de milho, pressagiava as mágicas que os arte(e)fatos tecnológicos viriam a fazer em seu conluio com os humanos. Da roda ao telescópio Hubble, nossa associação com as coisas - os quase objetos de Serres, mas, mais no sentido nos entregue por Latour (1991) - redefine a nós e a nossa noção do mundo. Ficamos encantados por que a técnica é capaz de maravilhar os humanos desde o mero queixo caído, até sua paralisação completa.
Hoje, guiando o carro e falando ao telefone no viva a voz, com meu pai, que mora em Passo Fundo, vou me tornando o devorador de técnicas e saberes sem os quais não consigo definir nem a mim, nem aos meus. Na roda da vida fomos colhidos, eu e meu pai. Está ele de novo em outro mundo, o seu terceiro desde o nascimento. Eu em meu quarto e a caminho do quinto. Uma conta meio inexata esta do número dos mundos a que somos tangidos pelos portais tecnológicos. Mas eu contei para mim quatro: o da infância de que eu falava acima; o da adolescência onde descobri a força das matilhas humanas e do sexo, o marxismo e a religião militante; o mundo do trabalho e da atenção a saúde, minha vulnerabilidade e a dos outros, e o quarto, onde ora me encontro, mundo em que falo com os mortos e com as pessoas que não conheço através dos livros, da nuvem de informação que nos envolve e da produção solidária de mim mesmo e de meu mundo.
Neste mundo das redes que darão lugar as topologias, segundo Serres; da democracia que está incluindo na república os coletivos de humanos e não humanos (proposições), que farão uso de sua cidadania na busca de um melhor mundo comum; usei um pouco de minha experiência e experimentação pessoal na busca de um chão comum que nos livre de um relativismo apressado, como nos adverte Latour em Políticas da Natureza (2004) para pensar dois quase objetos, quase sujeitos: O cartão bancário, inclusive em sua síntese com o cartão de crédito, e o cartão SUS.
Estes objetos, híbridos de natureza e cultura, mobilizam um saber que detém uma quantidade inconcebível de informação, para nossos cérebros de bípedes, e que pode mobilizar potências em direção a afirmação da vida, de sua negação ou, talvez pior, de sua superação ou “obsolência programada” .
O cartão bancário está na cena há mais tempo. O conhecemos no início dos agitados e dançantes anos oitenta. Serve a organização do sistema financeiro em sua saga de concentrar no valor moeda fragmentos das vidas produtivas de milhões de pessoas. Sim. Aqueles, aparentemente insignificantes, valores cobrados a cada operação de saque, depósito, verificação de extrato, emissão de cheques, etc. etc. etc. Ele organiza o fluxo de vida convertido em valor moeda. Passa e repassa do mercado ao capitalista, do capitalista ao trabalho, do trabalho ao mercado, sempre retendo um pouco para o chamado sistema financeiro, pagando o salário da acumulação e a acumulação do salário.
Bem, faz isso e é o que importa. Um sistema de inteligência artificial que organiza, para o bem e para o mal, uma economia que não existiria sem a antropofagia que Teixeira e Cyrino (2003) bordam em cima do papiro em que Latour aponta os híbridos e declara que “jamais fomos modernos”. Por aqui talvez não tenhamos mais do que desejado ser modernos. Já o começamos de viés, em 1922, na semana de arte moderna e ali adiante, 1928, na primeira edição da revista de antropofagia afirmamos com Oswald de Andrade que comíamos de tudo (simbolicamente) e a todos (talvez mais do que simbolicamente).
Não obstante, nosso teórico e artístico descaramento frente às metrópoles modernas, o modernismo tupiniquim produziu nas décadas seguintes uma industrialização com nuances de fascismo, toques de desenvolvimentismo trabalhista e toda a reação e repressão oligarca que nós mestiços não merecíamos. Em 1964 tivemos de amargar um golpe militar que já era ensaiado pelas elites desde o suicídio de Getúlio Vargas em 1954. As conferências de saúde marcam passo e a discussão da saúde universal com controle social deve esperar até a luta pela reforma sanitária e democratização do país em 1988.
E o cartão SUS? Pensa o leitor apressado. É. Este aliado do controle social, da solidariedade entre as entidades que pedem assento junto aos humanos no salão da coisa pública hiberna como um urso. Enquanto pedimos aos brasileiros que façam a política do bem comum com paus e tochas. Até as pedras “sabem” que não se controla um sistema de saúde de cerca de 70 bilhões de reais ao ano com a abnegada dedicação de representantes de entidades da sociedade civil. Aliás, alguém viu? Se viu, não contou onde ela anda. Provavelmente surfando, navegando em conexões discadas a procura de vídeos curiosos da intimidade de anônimos ou celebridades.
O SUS, sem os híbridos de tecnologia e cultura, simplesmente não pode ser gerido em favor do bem comum. Precisamos da instituição de um mundo que inclua a todos as entidades que multiplicamos quando íamos fazendo a modernidade, Latour de novo. Sabemos de prefeitos que compram 70 latas de leite especial para alimentar um bebê com alergia a lactose durante dois dias. Secretários que pedem a compra de 70 baterias de carro para uma secretaria que só possui sete carros. A máfia das ambulâncias, dos vampiros...
Já discutimos os problemas de se repassar centenas de milhões de reais a fundações de direito privado que deverão sua gênese a políticos com mandatos de quatro anos. Desejar que uma empresa nascida do cruzamento de interesses escusos abdique de irrigar o caixa dois eleitoral de seus pais é como desejar que todo o filho “ilegítimo” prefira a morte à existência.
Ora, como o sistema de saúde complementar fiscaliza o uso das verbas dos usuários de seus seguros de saúde? Com um exército de conselheiros desmotivados e cansados de usar palavras contra a “força” do dinheiro e da corrupção?
O que eu vejo é que para lucrar (com um mercado equivalente ao SUS, mas que só atende a um oitavo da população protegida pelo SUS) os conglomerados de saúde empregam bem os híbridos personificados nos cartões da Golden Cross, Amil, Sul América, Unimed e outros que tais. Sistemas de inteligência artificial a serviço de suas contabilidades, contratos leoninos e muita promessa para o mínimo necessário de cobertura.
Ademais os procedimentos caros o SUS cobre. O SUS não consegue é cobrar o sistema privado pelos procedimentos que ele executa. O sistema público saberia, se fosse implantado o cartão SUS, quem tem um seguro de saúde privado, mas usa o SUS para fazer transplante, por exemplo. Assim poderia cobrar dos convênios privados os lucros que eles obtêm a custa da externalidade contábil que o SUS representa para as corporações privadas.
Referências
Gray, John. Cachorros de Palha – Reflexões sobre humanos e outros animais. Rio de Janeiro: Record, 2007.
Latour, Bruno. Jamais fomos modernos – ensaio de antropologia simétrica. Editora 34. São Paulo,1994.
____________ Políticas Da Natureza, Como Fazer Ciência Na Democracia. Bauru, SP: EDUSC, 2004.
Serres, Michel. Hominescências: o começo de uma outra humanidade? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil 2003.
Teixeira, R. R. & Cyrino, A. P. - As ciências sociais, a comunicação e a saúde. Rev. Ciência & Saúde Coletiva, 8 (1): 151 – 172, 2003.
Observação:
Xirú: Apelido de um primo de meu pai e de qualquer um que não pudesse nomear sua linhagem até algum parente distante na Europa, também um mestiço de índios e negros.

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