domingo, 2 de outubro de 2011

Bruno Cava - RJ do Proletariado ao Consumitariado



Hoje, 103 milhões brasileiros pertencem à classe média. O IBGE dá a definição da classe C: categoria de renda domiciliar mensal entre três e cinco salários-mínimos (entre R$ 1.635,00 e R$ 2.725,00). Isto dá nada menos que 53% da população do país. Só em 2010, 19 milhões deixaram as faixas D e E. Uma proporção inédita na história da desigualdade que é a história do Brasil. Esse contingente aumentou seu consumo de produtos e serviços em sete vezes(600%!) entre 2002 e 2011. Em 2010, a classe C sozinha consumiu R$ 865 bilhões, quase o mesmo que as mais abonadas A e B, que somadas consumiram R$ 909 bilhões. É a famosa ascensão da nova classe média, ocorrida no governo Lula (2002-10), graças a um conjunto integrado de políticas sociais: massificação do bolsa família, aumento do salário mínimo, crescimento do emprego e do trabalho informal, acesso universitário, facilitação do crédito. É o pobre que agora tem computador e internet em casa, come iogurte, vai a restaurantes, frequenta academia e viaja de avião.
Não confundir classe C com o conceito marxista de classe, nem com a antiga classe média, quer dizer, a elite branca diplomada que, ou tem horror de preto e pobre, ou é humanamente paternalista, — em qualquer caso preconceituosa. Aquela galera que, quando você surge com um panfleto de Lula ou Dilma, responde deus me livre!
A publicidade não tardou em se debruçar sobre a nova classe média brasileira. Aliás, só fala nisso: como interpretar seus desejos de consumo e explorar o novo segmento do mercado consumidor. Uma polpuda jazida humana à espera de produtos sob medida às suas necessidades de embelezamento, diversão, decoração, turismo, carros, pet shop. As empresas travam uma verdadeira guerra publicitária pela classe C. Sob o ponto de vista do capital, uma oportunidade histórica para integrar a todos no Sistema. Consolida-se também o novo capitalismo no Brasil: mais de 200 milhões de celulares e linhas móveis em operação. 70 milhões de novas contas correntes abertas e os bancos lucram como nunca antes.
Curioso como esse ponto de vista (o do capital) é o mesmo do esquerdismo. Para eles, o governo Lula capturou de vez a possibilidade de uma mudança estrutural. Assimilou os pobres à elite. Tornaram-se consumistas. Agora é só esperar que compartilhem dos mesmos valores e preconceitos dessa elite, e aí votarão na direita. Argumento semelhante ao de FHC, embora pesquisa de 2011 mostre que a classe C está com a esquerda: 32% preferem o PT, a 8% o PSDB. O que me parece coerente. Se concretizar políticas sociais fosse suicídio para a esquerda, ela deveria promover o quê, o quanto pior melhor, o cataclisma social como condição para uma revolução redentora?
Há toda uma linha de crítica ao consumismo e à sociedade de consumo que vem sendo reciclada, para desmerecer a (incipiente, porém inegável) diminuição da desigualdade no tecido social brasileiro. Isso tem uma linha moralista, que culpabiliza o desejo e opõe moral à estética. E uma linha pessimista, que só vê aclasse C como passiva e neutralizada, como novos arrivistas, como meros consumidores. No primeiro caso, a direita marxista cristã, como quando Frei Betto defendeu que o pobre dito puro (sem educação formal) não pode ter geladeira, senão vai querer consumir sorvete e refrigerante, contaminando-se com o mal do capitalismo: o supérfluo. No segundo caso, a direita marxista apocalíptica, pra quem tudo está perdido e não tem mais jeito, o pobre agora não fará a revolução mesmo, pois está fascinado por seus televisores LCD, ipads e escovas progressivas, rendeu-se ao fetichismo da mercadoria, ao espetáculo.
Ambas as interpretações, que convergem na arena pública para desconstruir o governo Lula, fracassam ao não perceber a questão da renda e consumo comoprodução de subjetividade. É preciso não nivelar a classe C, nem mesmo tendencialmente, à elite branca diplomada recalcada, como se tivessem sido assimilados na classe média tradicional. Enquadrá-los apenas como categoria passiva de consumo é o ponto de vista do mercado, jamais pode ser da esquerda. Há uma disjunção entre ser e ter. Por que, quando um índio põe uma bermuda lamentamos que ele perdeu a essência como índio, mas quando um branco veste um cocar, ele não é menos branco por isso? Os pobres não têm baixa autoestima. Não querem ter uma subjetividade igual para viver exatamente como os ricos, das madames e playboys (e playcheviques), da novela das oito, do comercial de margarina ou de cerveja (os comerciais é que aspiram a ser como os pobres!). Pretendem, isso sim, angariar igualitariamente todos os direitos e acessos dos ricos. Mas sem deixar de existir como se constituíram nas esquinas da vida, isto é, como gatos que nascem livres, na sua potência de reinvenção. É o paradoxo da pobreza: não é só carência, mas sobretudo potência. Nesse sentido, país sem pobreza não é país sem pobres, mas sem ricos.
A nova classe média são mil classes médias, mil subjetividades, sujeitos em atividade, produção de discurso e de vida. Seu excesso não se restringe a consumismo, mas à produtividade de um novo mundo. Não à toa, a velha classe média ressinta-se, escandalize-se; não admiram tantos colunistas e humoristas veiculem tal ressentimento sem a boa e velha cordialidade das elites racistas. A riqueza não consiste simplesmente em novos objetos para os sujeitos, mas também em novos sujeitos para os objetos. Assim, o consumo também é espaço da luta de classe e não se separa do processo de produção de bens e valores como um todo. Marx dixit.
Então onde está o ponto de choque? Onde está o conflito? Certamente, não noshopping center, onde o desejo em excesso é domesticado e padronizado, onde você precisa comprar o que deseja ser, e desejar apenas o que lhe é oferecido. A força consumista reside no incremento da mobilidade, da comunicação, de mais internet, redes e mais cultura e mais mídia, da combinação de afetos, no trabalho social potencializado nos novos sujeitos-em-atividade. É a primavera periférica, na poesia das vielas, no direito achado nas ruas. Esse contingente de dezenas de milhões não se apassivou: ativou-se. E reúne as condições para continuar lutando pelo máximo existencial. Como escreveu o sociólogo Giuseppe Cocco, as guerras do pós-Lula não são tanto pela classe C, mas da classe C.Formou-se, no Brasil, um novo consumitariado.
Bruno Cava - RJ

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