terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Trabalho de Acompanhamento Terapêutico em comunidades pobres







Este ano fui convidado a supervisionar um grupo de técnicos em enfermagem e agentes de saúde que estão realizando o curso de Acompanhamento Terapêutico pela Escola de Saúde Pública e Secretaria Estadual da Saúde do Rio Grande do Sul.
Percebemos a riqueza do grupo por sua diversidade de intervenções na rede SUS de Porto Alegre e pela “natural” invisibilidade que tradicionalmente se institui com os fazeres dos trabalhadores que estão excluídos do campo de linguagem que formula as intervenções em saúde mental. Ou seja, em tese, eles se ocupariam do fazer, enquanto a parte da equipe que tem formação acadêmica se ocuparia de definir o que e como fazer.
Há cada vez mais exceções a este modelo de organização do trabalho, porém ele ainda é majoritário no universo total dos processos de trabalho. Assim, estes relatos brutos dão conta de aproximar as províncias de linguagem envolvidas no trabalho em saúde e expressar na linguagem do cuidado o que há de comum entre os trabalhadores da saúde que atuam em equipes heterogêneas em termos de formação, de concepções de mundo e de status simbólico.
Vou publicar trechos dos relatos de encontros de supervisão na intenção de dar um lastro concreto, ou empírico para as observações de Michel Serres sobre a adolescência da humanidade que para ele se torna evidente neste início de milênio. Acuados por medos e arrogâncias, impotências e onipotências jamais tivemos tantos recursos para resolver nossos problemas. Como ele escreve:
"...assim como uma planta arborescente assume pouco a pouco a forma ramificada, o porte ou a aparência de uma árvore... o processo de hominescência acaba de assumir igualmente seu lugar, embora não saibamos ainda que homem ele irá produzir, enaltecer ou assassinar".
E no entanto não sabemos, nunca soubemos, em que resultarão nossas artes. Os casos narrados a seguir têm este caráter dos dramas adolescentes que costumam nos irritar. Nós trabalhadores da saúde acessamos um arsenal de saberes a serem usados na promoção e no cuidado com a vida. E na comunidade vemos dores e tragédias que poderiam ser evitadas facilmente de acordo com nossos manuais assépticos. Como quando tentamos emendar um adolescente, que já tendo um corpo na vida de adulto, corre em direção aos riscos como se fosse uma criança. Potente o suficiente para se por em perigo, mas incapaz de parar na iminência da tragédia: A humanidade e nosso filho de 15 anos.
Começamos o primeiro encontro de supervisão falando de experiências de cuidado em saúde mental, articuladas a partir do meio social em que o cuidado é feito e das estratégias de produção de sentido e significado que podem contrapor a desagregação familiar e comunitária em zonas da cidade devastadas pelo tráfico de drogas e exclusão social.
A partir da leitura de uma pequena fábula narrada nas páginas 21 e 22 do livro "falar de amor à beira do abismo" de Bóris Cyrulnik, refletimos sobre vários casos que são acompanhados pela Darcila no PSF Maria da Conceição. São experiências viscerais, tecidas com afeto e implicação da equipe do PSF.
No primeiro relato sobre este serviço vimos que o acompanhamento dos usuários é realizado para proteger e cuidar de sementes de vida que emergem em cenários dramáticos. Por exemplo, mãe, filha e neta: - caso de uma avó com 23 anos que havia sido mãe aos 11 anos. Esta sua filha, por sua vez, repetiu a mãe e também teve um filho, aos 11 anos. Lidar com o fato concreto, bruto e subjetivo em sua intensidade e produzir chamas de vida a partir do cuidado que não indaga para cada caso um culpado é o grande desafio. Deixar que a história em si fale e que desta se conheçam os caminhos e estratégias que sejam resolutivas para quem está em risco e pedagógicas para os que de perto tem vínculos familiares e comunitários.
Outro relato: Um jovem viciado, soro positivo, tuberculoso, moribundo, casado e pai de várias crianças, espera a morte em casa, recusando-se a ir ao posto ou a uma emergência. Pouco se podia fazer pelo rapaz que ia se consumindo em sofrimento na frente da esposa e dos filhos.
Uma mobilização da agente comunitária de saúde insistiu com o atendimento domiciliar, mesmo com a negativa revoltada do rapaz. Essa insistência permitiu que a mãe fizesse a retirada dos filhos do cenário de desespero, levando-os para a casa da avó. Isso para evitar os danos psíquicos de se presenciar a agonia, sem sentido, do pai.
Em seguida, depois de muito convencimento e ajuda de moradores da comunidade, o próprio pai aceitou ser levado para avaliação médica de urgência e foi internado no HCPA onde sofre em coma com mais dignidade do que em seu barraco. São situações aparentemente impossíveis, sem dúvida trágicas, em que o olhar permitiu evitar, há muito custo, a tragédia de alguém se deixar morrer em frente aos filhos.
Fomos relacionando este tipo de desespero a situações em áreas da cidade em que há pobreza, mas não miséria. Também comparamos nossos guetos urbanos de exclusão social ao tipo de desespero que se instala em sociedades inteiras como alguns países africanos em que não há SUS, nem ESF.
Concluímos que a racionalidade e a condição civilizada não passam de um verniz superficial como escreve Zygmunt Bauman, um grande sociólogo contemporâneo no livro "Medo Líquido". Assim, a sanidade é um atributo frágil, assim como a condição de civilizados. Tudo tende a se quebrar como a casca de um ovo, quando desaparecem coisas básicas que não costumamos valorizar no dia a dia: - a segurança simbólica e concreta de se ter luz elétrica, água encanada, esgoto, escolas e serviços de saúde.
O que nos faz lamentar profundamente estas situações trágicas é que não há nestes sofredores nada que os faça essencialmente diferentes de nós. Falta para eles àquilo que para nós é mal percebido, justamente por que temos em uma medida, se não ideal, mas infinitamente maior: um vínculo com o mundo do trabalho, vínculos familiares e comunitários. Coisas que temos acesso diariamente. E que por serem tão presentes, deixamos de valorizar.
A insistência com que nossos pais repetiam suas proibições, seus sermões, o cuidado que tinham com sua saúde porque, não podiam faltar na tarefa de concluir nossa educação, etc., simplesmente não existe para estes farrapos humanos que vem até nós quando podem e até os quais vamos perseverantemente ajudar, mesmo quando eles nos ignoram.


São estas vivências que trazemos enclausuradas nas memórias de nossas andanças de cuidadores e que articuladas com os conteúdos teóricos do curso de AT comporão o diário de bordo e o trabalho de conclusão do curso. Então, é a oportunidade de tornarmos nosso trabalho, nossos desafios diários e sofrimento, em algo que possa ser significado de forma positiva. Ou seja, produzindo conhecimento, mostrando nosso esforço para produzir saúde e mitigar a dor do corpo e da alma. Enfim, aliviando nosso próprio fardo de, ao cuidarmos, sermos atingidos pelas tragédias com que nos defrontamos no trabalho em saúde.



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