Já sugeri aqui neste espaço em um comentário sobre o ato médico que a referida lei condenaria os médicos a solidão voluntária no seio de uma equipe interdisciplinar em que a responsabilidade é por natureza solidária.
Ora se nos colocarmos no lugar do usuário/paciente/cliente pouco nos importa quem irá assumir determinadas responsabilidades. Eu, enquanto usuário, quero que não aconteça nada diferente do que meu pleno restabelecimento. Se a minha infecção hospitalar se der devido a uma má higienização do ambiente ou a uma decisão equivocada da junta médica o fato é que o dano estará estabelecido e eu desejarei o máximo de reparação possível. Ainda que por maior que ela seja poderá jamais ser equivalente ao meu dano.
Ou seja, o que salva ou condena um procedimento são os processos de trabalho. A forma como eles são organizados. Os riscos e os benefícios emergem da cadeia de eventos disparada pela relação entre a equipe e os usuários. Para dar uma idéia da complexidade desta relação transcrevo um trecho da obra de Michel Serres (Hominescências: O começo de uma nova humanidade? 2003) onde ele reflete sobre as mudanças no corpo humano ao longo do século XX em virtude dos avanços das tecnologias de atenção e cuidado da saúde dos humanos:
“Em resumo, por volta da segunda guerra mundial, a medicina começou a curar, o que ela verdadeiramente não havia feito de Hipócrates a Galeno, Laennec, Jenner e Sammelweis. Subitamaente eficaz, ela alterou nossa relação com a saúde, com o sofrimento, a vida, a morte com nosso corpo e com nós mesmos, uma vez que a farmácia passou a fornecer um leque cada vez mais amplo e variado de remédios apropriados, particularmente analgésicos e anestésicos que aliviam a dor e, por vezes, até a fazem desaparecer.
Antes da metade do século XX, a descrição detalhada de doenças e o diagnóstico lúcido prevaleciam sobre o tratamento: o profissional da saúde compreendia bem as patologias e, graças aos raios X, enxergava cada vez melhor as lesões que elas provocavam, embora raramente as curasse. Ele pode fazê-lo hoje, e isso por que o paciente exige o retorno à saúde, por vezes sob a ameaça de um processo. O bem estar do corpo, antes raro, tornou-se freqüente. O restabelecimento tornou-se um direito e a doença antes cotidiana, tornou-se insuportável. No universo do incurável e da dor, desde que começou a salvar, o médico à antiga assemelhava-se a um feiticeiro, um semideus; por um paradoxo, a sociedade o transforma em um responsável penal.”
Pertinente esta observação de Serres. Vejamos a solidão que os médicos já experimentam em relação aos processos por “erro médico”. Estão no STF os recursos de médicos contra processos de indenizações iniciados a cerca de uma década que chegam, somados, as centenas de milhões de reais.
A aliança entre profissionais da saúde e cientista nos trouxe este admirável mundo novo, segundo Serres. Uns produzindo técnicas e os outros as disseminando, testando-as, aperfeiçoando-as. Na síntese dos dois atores – o médico cientista – enclausurado no mega-laboratório chamado hospital vemos a aceleração de um processo onde quase todos aceitam ser cobaias em troca de um pouco mais de esperança.
Mais recentemente um novo ator, aliado dos cientistas e dos médicos entra na cena para acelerar ainda mais as modificações no corpo dos humanos: a inteligência artificial aliada aos robôs. Para finalizar este pequeno passeio pelas solidões dos ainda modernos e a solidariedade de humanos e não humanos que já não se desejam mais modernos, transcrevo um comentário meu bastante provocativo feito a um texto que fazia a defesa do ato médico:
Outro dia fui fazer uma ecocardiografia.
O aparelho avaliou, em cerca de dez minutos, se as medidas e relações de volume de meu coração estavam de acordo com a as proporções "normais" para minha idade e peso.
Enquanto a maquina registrava suas impressões um profissional da saúde falou comigo sobre a vida nos grandes centros urbanos, sobre sua infância no interior e outras amenidades.
Depois disse que me iria entregar o resultado do exame em seguida.
Veja: Não havia nada a analisar ou interpretar. O programa instalado no equipamento de ultrassonografia consegue dimensionar a imagem captada pelo emissor colocado em meu peito e compará-la a um banco de dados que está no aparelho mesmo e emitir o resultado.
Ao profissional coube apenas concordar com a máquina e assinar o diagnóstico. Há cerca de 10 anos havia realizado o mesmo exame e lembro que parte das informações para a realização do diagnóstico, ou apenas do resultado do exame, ainda estavam no banco de memórias do cérebro do profissional da saúde, além de ele mesmo ter que com um cursor fazer as medidas de cada segmento do órgão examinado e conferir se elas seguiam ou não o padrão. Era assim.
Não é mais.
Afinal, onde está a competência que exige a reserva de mercado que dá segurança a quem é diagnosticado e a quem faz o diagnóstico?
Que grau de complexidade estamos pagando a certos profissionais da saúde, que embora com extensa formação, estão cedendo suas habilidades às máquinas com inteligência superior e artificial?
Será que era preciso uma lei para garantir uma reserva de mercado que bem pesado já não valeria um básico de R$6000,00 reais para 20 horas semanais de trabalho?
Aqui, é claro, a provocação se impôs a reflexão. Porém a intensidade das idéias convida a pensarmos juntos (e não uns contra os outros) sobre o novo humano que surge de nossa solidariedade ou de nosso egoísmo, talvez de ambos...
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