sexta-feira, 27 de maio de 2011

Um saber menos arrogante



Uma reflexão a partir da coletânea de ensaios
“A anatomia de John Gray” da editora Record, 2011.

 
Uma vertente do pensamento conservador na Inglaterra tem se mostrada tão crítica ao (neo) liberalismo e a chamada nova direita norte-americana, quanto à esquerda tradicional. O mais notável pensador deste conservadorismo metódico, cético e naturalista é o filósofo John Gray. Um pensamento conservador que reivindica, oportuna e pontualmente, tons de radicalismo para enfrentar os fundamentalismos escatológicos que deixaram suas marcas nos grandes sistemas teóricos ocidentais que duelaram ao longo do século passado.

A leitura de que ambas as ideologias, a liberal e a estatizante, são ramificações de uma mesma religião secular destilada a partir do monoteísmo cristão e a filosofia da essência das idéias platônicas é inusitada. Porém, as evidências a tornam realista e consistente com história da política e da economia do século XIX e XX. O humanismo iluminista tão identificado com o racionalismo cientificista que é hegemônico no pensamento social e econômico neste início de século é severamente atacado por John Gray.

Coservadores e verdes podem compartilhar uma inesperada agenda comum se os conservadores se aliviarem do messianismo liberal, de um lado e os verdes dos vícios libertários e coletivistas, de outro, segundo este autor. Para nós, singelos defensores da igualdade social e do SUS, a leitura de um pensador conservador, genuíno e cético, pode ter o efeito de alongar a visão do horizonte sem escorregar para um utopismo ingênuo.

Todo o texto, com sua farta fundamentação e o olhar saudavelmente cético e humilde em relação à pretensa centralidade da humanidade no grande jogo da vida é útil para os operadores do SUS. Este sistema público de saúde é baseado em altas apostas no pretenso caráter “benigno” das coletividades que dele se beneficiam e que devem ser os sujeitos de sua realização ao mesmo tempo em que são seus beneficiários. A própria humanização do SUS é descrita por Eduardo Passos como uma aposta. Uma aposta é sempre feita contra as contingências e os recorrentes retrocessos políticos e sociais que deixam traços de um niilismo do senso comum que se expressa como desencantamento em relação ao que é comum e aos bens coletivos.

Encontrei, no capítulo sobre a agenda comum entre verdes e conservadores, algumas reflexões sobre o sistema de saúde pública na Inglaterra que podem ser importantes alertas a respeito do que nos espera no campo da saúde pública brasileira nas próximas décadas.
Gray começa afirmando que as experiências de estatização da saúde fracassaram no mundo comunista atoladas em um mar de lama de corrupção em que recursos escassos eram distribuídos de forma desigual. Isso lembra imediatamente o SUS: Poucos recursos para dar conta da universalidade prevista no texto constitucional. Não obstante, vemos um SUS pontuado por oásis de excelência que beneficiam desigualmente o conjunto dos contribuintes que sustentam, pagando impostos, os cofres públicos. Por outro lado, ele reconhece a falência do sistema de saúde mercantilizada, dirigido pelo mercado, nos Estados Unidos da América. Só de passagem basta lembrar que cerca de 40 milhões de americanos não dispõem de atendimento médico de qualquer natureza.

Pela primeira vez vi em um pensamento claramente conservador a crítica ao monopólio da profissão médica em relação às ações de saúde e a medicalização da vida a qualquer custo. Creio que poderá ser surpreendente que em um campo, como o dos defensores do SUS, que vê a si próprio como progressista, encontrar uma convergência de idéias entre o pensamento conservador e o pensamento dos verdes. O caso é que John Gray contesta exatamente a idéia de progresso moral simultaneamente ao progresso do conhecimento tecnológico. Trataremos desta idéia antiga e ainda bastante original, mais adiante.

O fato é que o texto convida o leitor a aceitar a idéia de que o tratamento médico tem limites. “Todos vamos morrer, e impedir o curso da natureza não pode ser a função adequada do atendimento médico (...) A medicina pouco pode fazer a respeito da fragilidade de nossa condição, e nada sobre nossa mortalidade; ambas permanecem sujeitas ao acaso e ao destino genético” (p.404)

Citando as demonstrações de Illich e outros, Gray advoga que o aporte na expectativa de vida tem boa parte de sua causa em ações de saneamento básico, incremento nas dietas, questões ambientais e culturais como os estilos de vida. Muito na doença está ligado ao modo de vida e é irrealista pensar que para cada comportamento humano, na sua insaciável busca por prazer, pode ser redimida por uma ou mais terapias médicas. Esta é uma verdade que está ocultada pelo discurso popular da “’guerra contra o câncer”, segundo John Gray. A morte não é um inimigo a ser vencido. Antes é um amigo a ser recebido quando a dignidade de estar plenamente vivo está ausente.

“Por milênios as pessoas nasceram, sofreram de enfermidades e morreram sem que essas ocorrências fossem compreendidas como desordens tratáveis”. Assim Gray abre um parágrafo, na página 406, em que defende que o monopólio médico (de procedimentos e da prescrição de uma ampla medicalização dos processos vitais) deve ser combatido. Prossegue na página seguinte:

"As liberdades e competências de enfermeiras, parteiras, farmacêuticos, ópticos e outros, na profissão médica, variam amplamente através das jurisdições. E países diferentes estão em diferentes etapas no caminho para a medicalização da vida, que a autoridade “omnicompentente” da corporação médica obriga a trilhar. Não existem razões pelas quais uma política de restauração da responsabilidade pessoal pela saúde não deva fazer empréstimos, ecleticamente, a esses diferentes regimes da profissão médica, com o intuito de abrandar e talvez, eventualmente, diminuir o monopólio da profissão dos médicos''.

Adiante se acrescentam a uma estratégia de atenuar o poder do monopólio médico o uso das opções não-convencionais, as chamadas terapias alternativas, de acordo com o desejo do próprio paciente. A autoridade médica ajuda a obscurecer o conhecimento sobre alternativas terapêuticas ao saber consolidado na academia e que favorece a criação de uma indústria voltada para “curar” os efeitos sobre a saúde humana da vida prosaica e intensamente moderna.

Gray volta a citar Ivan Illich textualmente ao tentar propor uma alternativa liberal ao sistema público de saúde. Uma proposta onde o usuário escolhe livremente, em um mercado aberto e privado de prestadores de serviços, a alternativa terapêutica que ele julgue mais adequada:

''(...) ninguém sabe se a mais vantajosa forma de atendimento médico é obtida de produtores de serviços médicos, de agentes de viagem ou de deixar de trabalhar no turno da noite. (...) a pessoa que, com um diagnóstico de câncer, escolhe uma operação e não uma farra nas Bahamas, não sabe o efeito que sua escolha terá sobre o tempo que lhe resta de vida. A economia da saúde é uma disciplina curiosa, de alguma forma reminiscente da teologia das indulgências que floresceu antes de Lutero. Você pode contar quanto os frades coletam, você pode ver os templos que constroem, pode tomar parte nas liturgias a que se entregam, mas você pode apenas adivinhar o que o tráfico de remissões do purgatório faz com a alma depois da morte. Modelos desenvolvidos para estimar a vontade dos contribuintes de pagar os crescentes gastos médicos constituem um similar trabalho de adivinhação escolástico sobre a nova igreja universal da medicina.'' (Ivan Illich, Limites to Medicine)

Descontando nossas evidentes objeções a privatização do atendimento em saúde, podemos admitir uma parcial concordância com Gray. Uma vez que estes argumentos de Illich parecem servir bem a uma idéia convergente entre os defensores do SUS e estes notórios autores conservadores ingleses: O combate ao monopólio médico e a medicalização da vida. Assim, podemos olhar com atenção a citação acima que parece cômica justamente pela obviedade oculta que ela desvela.

O irônico é que o estágio da instituição da ampliação do monopólio e reserva de mercado para a corporação médica no Brasil criou um impasse inesperado pelos profissionais da medicina. Bem ao estilo de argumentação de John Gray a racionalidade contém limites internos que afetam a ação dos atores sociais. Ao se lançarem em direção a um determinado objetivo sempre acabam por acarretar conseqüências inesperadas e indesejadas.

A lei do ato médico, se aprovada, institucionaliza a necessidade estatal e mercadológica de uma ampla proletarização da profissão médica. Algo que vai contra o desejo inconfesso de nivelar por cima os ganhos dos profissionais médicos.

Certamente não decorrerá da aprovação da lei do ato médico uma generalização do alto padrão de renda da minoria dos médicos. Atualmente parte dos profissionais médicos acumula os benefícios de dois ou mais empregos em instituições públicas de saúde, com o trabalho em instituições de ensino e pesquisa, além dos seus consultórios particulares.
O que vai ocorrer é necessariamente uma equalização dos ganhos em torno de uma média mais realista em relação aos recursos que a sociedade admite investir na saúde pública. Algo que pode ser insinuado pelo exemplo cubano do médico de quarteirão. Mas o contexto brasileiro é muito mais radical do que o cubano em muitos aspectos. O mais notável é o aspecto demográfico e epidemiológico. Vejamos: Para uma população de cerca de 200 milhões de habitantes, distribuídos de forma irregular pelo território nacional, as exigências constitucionais da universalidade significam um incremento significativo no número de profissionais da saúde em geral.

Ou seja, usando como exemplo apenas o profissional médico, para uma área restrita de cerca de 4000 pessoas ou 800 famílias, será necessário um profissional com dedicação integral de 40 horas semanais. Lembremos que há uma forte reivindicação dos odontólogos para integrarem as equipes da ESF. A renda inicial de médicos recém formados oscila em torno de 50 a 100 mil reais por ano nos postos da ESF. Nada parecido, portanto, com os ganhos da elite acadêmica que defende a lei do ato médico.

De qualquer maneira a própria necessidade de uma indústria do cuidado e da atenção, em parte a favor da vida, em parte a favor da medicalização da vida, leva a uma massificação do trabalho em saúde. Isto já é vastamente demonstrado pela precarização crescente dos vínculos de trabalho em toda a cadeia da rede básica de saúde. Especialmente para os profissionais de nível médio e elementar. Mas progressivamente também dos níveis superiores, incluídos aí os profissionais médicos.

A série de argumentos defendidos por John Gray é facilmente descartável se o que ele chama de religião humanista e positivista se mostrar mais do que um credo que arremeda os dogmas religiosos. Se a humanidade for realmente capaz de progredir moralmente, tanto quanto avança tecnologicamente, a visão conservadora será amplamente superada e um admirável mundo terá início.

Porém, para quem pensar em perspectiva o tempo da humanidade sobre a terra (alguns milhares de ano contra quase quatro bilhões do surgimento da vida) uma dose de ceticismo e prudência quanto os pretensos poderes ilimitados da humanidade, é salutar. Tanto as promessas de redenção da humanidade que fundaram o humanismo da idade das luzes, quanto às tentativas de acabar com o conflito, praticada, seja pelo totalitarismo nazi-fascista e comunista no século XX, seja pela verdade única das leis do mercado e do fim da história neste início de século XXI, nos recomendam sermos prudentes.

As pretensões da medicina resumem, num caso isolado, a ampla capacidade que os humanos têm de se perfilarem a partir, e em busca de, mitos e dogmas não examinados.
"... não estamos longe de transformar o paciente em objeto, e a própria medicina, de profissão humanitária em ramo da engenharia biológica, cujo produto final é a sobrevivência sem alma."

A anatomia de John Gray / John Gray; tradução de José Gradel. - Rio de janeiro: Record, 2011. (Página 410).



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