quinta-feira, 24 de maio de 2012

JUSTIÇA DE SÃO PAULO MANTÉM PROIBIÇÃO DE DUPLA PORTA DE ENTRADA EM HOSPITAIS PÚBLICOS

O Tribunal de Justiça de São Paulo manteve por unanimidade a liminar que impede que os hospitais públicos geridos por Organizações Sociais (OS) no Estado destinem 25% de seus leitos para planos de saúde privados e pacientes particulares, como pretende o Decreto Estadual 57.108/2011. A decisão foi confirmada no último dia 15 de maio quando o TJ julgou o recurso proposto pela Fazenda do Estado de SP que pretendia manter os efeitos do decreto. O TJ entendeu que a liminar impedindo a privatização dos leitos deve ser mantida até que haja um julgamento definitivo da ação cível movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra a medida.
A liminar, expedida pelo juiz Marcos de Lima Porte em agosto de 2011, reforça a afirmação do Ministério Público de que o decreto “favorece a dupla porta de entrada, selecionando beneficiários dos planos de saúde privados para atendimento nos hospitais públicos geridos por Organizações Sociais, promovendo assim, a institucionalização da atenção diferenciada com: preferência na marcação e no agendamento de consultas, exames e internação; melhor conforto de hotelaria, como já acontece em alguns hospitais universitários no Estado de São Paulo”.
O Decreto 57.108 regulamenta a Lei Complementar 1.131/10, sobre o mesmo tema, aprovada pela Assembleia Legislativa de São Paulo no final de 2010. “Se a medida for implementada haverá uma situação aflitiva na saúde pública do Estado, uma vez que os dependentes do SUS perderão 25% dos leitos públicos dos hospitais estaduais de alta complexidade, que já são, notoriamente, insuficientes para o atendimento da demanda de nossa população”, declarou, no processo, o Ministério Público. Na época, a justiça determinou multa diária de R$ 10 mil “a ser arcada pessoalmente pelos agentes públicos” caso a decisão fosse descumprida. Com a decisão do TJ do último dia 15, a suspensão dos efeitos do decreto continua valendo, assim como a multa diária, caso o governo de São Paulo descumpra a determinação.
Para o promotor de Justiça e Direitos Humanos da Área de Saúde Pública do Ministério Público de São Paulo, Arthur Pinto Filho, um dos autores da ação, a decisão do último dia 15 confirma o erro da reserva de leitos para a iniciativa privada. “Pela primeira vez, de maneira unânime, um tribunal de justiça estadual não aceita como normal, legal e ética a questão da dupla porta em hospital público. Essa foi a grande decisão”, observa. Ele lembra que há treze anos o tema já tinha vindo à tona com a iniciativa de outro procurador questionando a dupla porta no Instituto do Coração de São Paulo (Incor) da USP. “Essa ação foi proposta em 1999 e houve um massacre geral contra esse colega. Ele foi massacrado pela mídia e pelo Tribunal, que o consideraram um sujeito atrasado, que queria impedir o avanço da medicina no Brasil. Estes setores diziam que a dupla porta era muito importante porque traria dinheiro novo para os hospitais e assim viveríamos num jardim florido”, conta.
Para o promotor, é a péssima avaliação das experiências de dupla porta em prática nos hospitais hoje que possibilitaram a mudança da opinião pública, com vários setores questionando a Lei 1.131. “Passados treze anos, com algumas experiências da dupla porta mostrando que isso é uma tragédia, é uma coisa inominável contra a população pobre, mostrando que gera um privilégio hediondo para quem tem possibilidade de ter um bom plano de saúde, porque os hospitais grandes só aceitam bons planos de saúde ou quem tenha dinheiro para pagar pelo tratamento, houve uma mudança de mentalidade no Brasil. Hoje, a maior parte da mídia entendeu que isso é uma hediondês”, reforça.
Arthur lembra que o próprio Conselho Estadual de Saúde de São Paulo, presidido pelo Secretário Estadual de Saúde, questionou a lei, assim como os conselhos regionais de Medicina, Psicologia, o Sindicato dos Médicos e vários outros movimentos sociais. “Em abril do ano passado, chegaram aqui na sede do Ministério Público em passeata quase três mil pessoas trazendo um documento para que o Ministério Público tomasse providências contra essa lei. Foi uma manifestação belíssima, a população veio para o centro para mostrar insatisfação”, disse.
E acrescentou: “Para ver a barbaridade que essa lei gerou, o Conselho de Secretários Municipais de Saúde dos Estados, que congrega todos os secretários de todas as prefeituras, portanto, de vários partidos, representou ao Ministério Público dizendo: ‘olha, se essa lei for implementada, essa gente que não terá mais atendimento no hospital público estadual, irá para o hospital público municipal e nós não vamos aguentar’. Então, há uma unanimidade aqui em São Paulo contra a lei. Isso sensibilizou o juiz, o tribunal e a mídia”, diz.
Ilegalidade - Os hospitais que seriam atingidos pela lei neste primeiro momento são o Hospital do Câncer Octavio Frias de Oliveira e o Hospital dos Transplantes. Apesar de os dois hospitais serem geridos por OS, o promotor Arthur Filho explica que, na teoria, o atendimento até então oferecido nessas unidades e em todas as outras administradas também por OS é 100% SUS, o que mudaria com a Lei 1.131/10, ferindo a Constituição e a Lei 8.080/90, que cria o sistema de saúde brasileiro. “O que o governo do Estado queria é que os hospitais administrados por OS fossem 75% SUS. Isso é ilegal, imoral e antiético”, pontua.
O principal argumento do governo de São Paulo para implementar a reserva dos leitos é o ressarcimento das seguradoras de planos privados de saúde ao SUS pelo serviço prestado aos segurados nos hospitais públicos. Segundo a Secretaria, não haverá preferência por estes usuários e pacientes particulares em detrimentos das outras pessoas. Arthur discorda que esta deva ser uma motivação para a lei. “Os hospitais públicos atendem todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil. Nós somos um dos quatro países que atendem estrangeiros de graça pelo SUS. Então, qualquer ser humano, tendo plano de saúde ou não, é atendido também no hospital público”.
Segundo ele, “a diferença é que ele entra numa fila única, quer tenha plano ou não. Se ele não tiver o plano de saúde e for atendido no hospital público, o SUS arca com 100% da despesa dele, agora, se ele for atendido no hospital público e tiver plano de saúde, o SUS trata dele normalmente, como qualquer pessoa, só que depois o dinheiro gasto será ressarcido. Isso tem que haver, se não fosse assim, seria uma iniquidade o plano ter um ganho em cima do hospital público. Mas não precisa de reserva de leitos para este ressarcimento, ele tem que se dar posteriormente, primeiro se trata do homem, depois se recupera o dinheiro”, contesta.
Para ele, a mudança que o governo pretende possibilita um lucro ilegal para os planos de saúde. “Os planos receberiam 25% dos leitos dos hospitais mais equipados de São Paulo sem gastar um tostão e ainda fariam propaganda: ‘olha, entre no meu plano que você terá o hospital do câncer, o hospital de transplantes’. Seria uma coisa nunca antes vista no Brasil, porque isso não tem paralelo em outros estados brasileiros”, critica.
O professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz e membro do Fórum de Saúde do Rio de Janeiro, Geandro Pinheiro, concorda que existe um problema de ressarcimento dos gastos com clientes de planos de saúde dentro do SUS. Segundo ele, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) nunca conseguiu fazer valer na prática este ressarcimento porque as operadoras questionam a regra na justiça. Geandro considera que é preciso pensar em outras formas de garantir este ressarcimento, por exemplo, com um sistema integrado de informações, que pode ser garantido com o cartão SUS.
“Nunca se resolveu este problema de como fazer o ressarcimento. A ANS já tentou fazer por pacote, por exemplo, exigindo 10% do faturamento total do plano. Mas nunca deu certo. E aí os nossos hospitais públicos estão lotados de pacientes de planos privados. E São Paulo inova: ‘ah, tem uma forma de resolver isso, já que o ressarcimento não está dando certo, ao invés de pedirmos o ressarcimento, nós já destinamos 25% de leitos para os planos privados´. Acreditar que não haverá privilégio dos usuários dos planos e particulares é o mesmo que acreditar no papai Noel. Tem muitas pessoas que estudam a dupla porta e mostram claramente: se tem duas portas e uma está trazendo dinheiro, não há como não ter privilégio. Até no privado, se você tem um plano de saúde golden e o outro usuário tem um plano diamante, o usuário do plano diamante tem privilégio. Se não fosse assim não precisava pagar o plano diamante. Então, dessa forma, reitera-se hierarquizações”, reforça.
O pesquisador acrescenta que, com a lei, o governo de São Paulo está invertendo a lógica da Constituição. “O SUS se complementa com o privado, isso está na Constituição, foi uma derrota que tivemos na época da constituinte, mas o que o governo de São Paulo está fazendo é dizer que o privado se complementa com o SUS”, diz.
Para Geandro, a destinação da gestão dos hospitais para as organizações sociais prepara o caminho para propostas como a privatização de leitos, uma vez que flexibiliza a Reforma Sanitária. “A OS é um artefato antiético dentro do SUS, então, tudo é possível, inclusive uma loucura como esta. Dentro dessa flexibilização da reforma sanitária a vara verga muito, aí muitas vezes não se reconhece mais a reforma sanitária e nem o SUS. Essa proposta só foi possível com a flexibilização ética do SUS, que está completamente descaracterizado em São Paulo”, observa. O pesquisador complementa que com a OS há uma privatização da gestão, embora outros aspectos como o financiamento, a regulação e a prestação continuem públicos. “Em São Paulo, tentaram privatizar um pouco mais do que a gestão com essa lei, tentam privatizar também 25% da prestação e algum componente do financiamento”.
EBSERH - Não é apenas em São Paulo que a dupla porta de entrada nos hospitais públicos está em discussão. Em todo o país, movimentos em defesa do SUS e trabalhadores dos hospitais universitários têm questionado a instalação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), aprovada no ano passado pelo Congresso, e criada para gerenciar os hospitais universitários. Cada universidade deve decidir se selará ou não um contrato com a empresa para a gestão do respectivo hospital.
“A Empresa formaliza o problema da dupla porta que já existe nos hospitais universitários. Esta dupla porta hoje gera muita insegurança jurídica, a Controladoria Geral da União e o Tribunal de Contas da União muitas vezes ficam de olho, assim como os controles sociais, que também questionam, e, por muitas vezes, os hospitais são multados. A EBSERH pega todos estes problemas e dá uma possibilidade de resolvê-los. Então, as relações com o privado dentro da universidade, a dupla porta é uma delas, mas também há a relação com as farmacêuticas, as pesquisas sendo financiadas pelo setor privado, tudo isso pode passar a ser legalizado”, explica Geandro.
O pesquisador reforça que os hospitais universitários, hoje, mesmo sendo públicos, mantêm dupla porta de entrada com privilégio para quem paga. “Boa parte da comunidade acadêmica acaba aceitando a EBSERH porque já pratica algo que é ilegal e que agora passará a ser formalizado. Tem histórias absurdas, como a de um hospital cujo setor de cardiologia tem leitos do SUS e leitos privados, com um total de oito leitos no setor, mas apenas sete travesseiros. A enfermeira foi distribuindo os travesseiros à medida que os leitos foram sendo ocupados, quando chegou o oitavo paciente, era um paciente que estava pagando, aí queriam que a enfermeira tirasse o travesseiro de um paciente do SUS para dar para este outro paciente que estava pagando. Exemplos como este acontecem desde longa data”, fala.
De acordo com Geandro, os hospitais universitários foram entrando em crise, com subfinanciamento, falta de articulação ensino, docência e assistência, terceirização dos trabalhadores, crescente relação com o privado, falta de atualização tecnológica, entre outros aspectos. “A solução para isso é ter um investimento forte e uma clareza do papel desses hospitais que também são de ensino e pesquisa. O governo vê os mesmos problemas que nós vemos, mas apresenta soluções diferentes, prefere não resolver os determinantes sociais desse problema”, analisa.
Por: Emerson Pacheco
Fonte: Site CNTS

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